Um pezinho fora da divisão trabalho-vida
Pezinho, aqui, é só uma figura de linguagem. Meu pé, de pezinho, não tem nada. Brincadeiras a parte, nas últimas semanas consegui, como há muito tempo não conseguia ou talvez nunca tenha conseguido nesse nível de clareza, me enxergar como uma pessoa só. Não um Rodrigo-profissional e outro Rodrigo-pessoa.
Consegui, a partir dos meus interesses genuínos e minhas escolhas nos momentos de descompressão, trazer contribuições para dentro do trabalho. Livros que li, por vontade própria, nutriram meus raciocínios e sugestões em reuniões e mentorias. Me diverti, vi séries de streaming e logo depois consegui compartilhar reflexões que fizessem sentido para colegas na empresa.
Sei que isso não vai acontecer sempre, por isso digo que foi apenas um “pezinho”. Senti o gosto do que é organicamente gravitar em torno dos assuntos que chamam minha atenção sem me desconectar do contexto profissional. Tenho receio da confiança, sei que nela também mora a cegueira para tudo que não está no meu foco. Mesmo assim, acredito que se quisermos nos manter relevantes profissionalmente nas próximas décadas, devemos quebrar, primeiro em nossas mentes, essa dicotomia entre trabalho e vida.
Essa criação da mente humana teve função clara na era industrial e, infelizmente, permeia nossos subconscientes até hoje. No “tempo livre”, entre amigos ou família, o ambiente pune o “eu do trabalho” repetindo padrões coletivos como “Vocês não estão falando de trabalho não, né?”. Nas empresas, o “eu de fora” — “Outie” ou “Externo” como na série Ruptura — ou é reduzido a cargos e descrições limitadas ou é explorado até o burnout. Assim, seguimos vivendo 2 vidas, nunca completos.
Pedimos às pessoas que sejam criativas e inovadoras, mas falhamos em acolher suas complexidades individuais e entender suas faltas como encaixes de um grande quebra-cabeça humano que são as empresas e o mercado. Do outro lado, IAs, como o ChatGPT, dão uma breve amostra de como será desleal a competição no futuro, especialmente para muitos de nós não treinados a navegar com e pelas particularidades humanas. Inexperientes em correlacionar assuntos aparentemente desconexos e, pior, acostumados ao pensamento superficial, sem nunca se permitir descer as escadas dos raciocínios incertos e complexos.
Imagino eu que se houvesse um chip capaz de contar horas cerebrais relacionadas à solução de problemas, as empresas dependentes de massa criativa desistiriam de tal modelo de remuneração. Me pergunto também o quanto disso não é comportamento filho da escolarização tradicional. Hoje sabemos que a aprendizagem não se limita aos ambientes formais, assim como o trabalho também não.
Trabalho, como vi nas reflexões do “Futuro das Coisas”, é muito maior que emprego. Emprego é apenas uma atividade remunerada. “Trabalho é mostrar quem você é e alcançar sua melhor versão”. Para sermos criativos e inovadores, é essencial sermos um só, em sintonia, evoluindo a cada dia.
O trabalho remoto, impulsionado pela pandemia, acelerou algumas discussões. Trouxe à tona excessos, mas também novas possibilidades. Passamos a ver com melhores olhos o encaixe do trabalho à vida e não o contrário. Quem conseguir manejar esse barco mais rápido, estará em vantagem. Não na corrida do dinheiro, mas na de se tornar a si mesmo antes que o tempo acabe, e esse acaba para todos.
Me perdoem os excessos, de frases-feitas e metáforas, apenas descobri que é onde as IAs ainda engatinham. Convenhamos, nem todos nós, mas apenas nós podemos bancar excessos sem necessariamente ultrapassar limites éticos. Minha intenção não é de maneira alguma passar um tom de superioridade ou de fala complicada. É que nunca senti isso antes e como bom humano é maravilhoso poder expressar meu entusiasmo, mesmo que momentâneo, à minha maneira.