Produtividade sem “cansaço”, é possível?
Janeiro de 2021. Férias. Já estava exausto, talvez a pandemia tivesse intensificado, mas não era algo novo pra mim. Lembro de ter pensado: “é impressionante, só arranjo tempo pra mim e para família assim, quando estou no meu limite”.
Fomos descansar alguns dias numa casa de praia, relativamente isolada, e para me acompanhar comprei o livro “Sociedade do Cansaço” do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, pois parecia encaixar com o momento.
O livro é pequeno, tem umas 130 páginas. Mal cheguei na página 30 e a sequência que sublinhei parecia gritar comigo:
“A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. […] São empresários de si mesmos. […] No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. […] A sociedade do desempenho, ao contrário [da sociedade disciplinar], produz depressivos e fracassados. […] O sujeito de desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da obediência. O poder, porém, não cancela o dever. […] a depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo […] O homem depressivo é aquele animal laborans que explora a si mesmo […] É agressor e vítima ao mesmo tempo."
Caraca! Será que precisa ser assim? Os dias lá foram de descanso realmente, mas ficava a dúvida de como podia evitar no dia a dia esse cansaço que nos deprime.
Fevereiro de 2022. 1 ano depois, após também um período de férias. Recebo a seguinte mensagem:
“Oi Perazzo, tudo bem? Lembro que você fez um artigo para organizar melhor as tarefas, sinto que tô precisando revisita-lo haha mas você teria alguma atualização dele?”
O artigo que ela menciona é de 2018. Até cheguei a começar um rascunho em 2020, relendo-o vejo que estava num caminho interessante (por exemplo refletindo sobre como introduzir pausas), mas eu não estava satisfeito. Desde então li, refleti, aprendi e adaptei algumas coisas. Será que daria para escrever uma atualização?
Lá atrás eu tinha pontos cegos, não reconhecer minha ansiedade era um deles, e não teria a pretensão de achar que refletir sobre o assunto novamente me livraria dessa possibilidade. No entanto, dessa vez tinha alguns indícios que sim talvez haveria uma maneira de ser produtivo sem isso significar períodos de trabalho intenso sempre terminados em exaustão. Daria talvez para minimizar o “cansaço” dissecado por Byung-Chul Han.
Então respondi:
“Oi, tudo bom. Não tenho uma atualização 🙈 Pelo menos não ainda hehehe tentando criar o hábito de escrever, talvez saia 🙂”
Saiu 🙂
Resumo de 2018
Resumindo muito, o que eu fazia era usar os princípios do Gettings Things Done ou GTD (Capture, Esclareça, Organize, Revise, Faça) com o Todoist e o Evernote como ferramentas centrais da rotina.
Eu mantinha meu radar atento para minhas “caixas-de-entrada” (mesas, contas de e-mails, correio tradicional, redes sociais, aplicativos de mensagem) e iniciava um fluxo de decisões quando algo chegava nelas. Por exemplo, vamos dizer que eu recebesse um item no email, se eu conseguisse já resolver (a regra dos 2 minutos), ok. Caso não, criava um item relativo a ele no Todoist para olhar depois. Diariamente voltava a essa lista para esclarecer (“necessita de uma ação ou não? é mais de uma ação?") e organizar, quebrando as tarefas até ficarem óbvias e depois colocando em projetos (quando eram algumas ações relacionadas ao mesmo objetivo) ou em categorias que eu imaginava facilitar a conclusão (ex: “assim que chegar em casa…"). Semanalmente revisava (tudo!) novamente para ver se algo mudou ou se havia esquecido de alguma coisa. Sempre que achava que eu estava livre pegava o próximo item pra fazer.
Vamos começar então com a primeira mudança.
Abandonei as ferramentas digitais?
Todoist sim, Evernote não.
Nada contra o aplicativo em si, muito bom por sinal, o problema é o meio. Com o tempo percebi que ter a lista de tarefas no celular tinha 2 pontos negativos:
- O celular por natureza distrai muito, eu abria pra ver as tarefas e acabava fazendo outra coisa, especialmente nas redes sociais.
- Minha lista crescia muito porque itens que deixaram de fazer sentido por qualquer razão ficavam lá na lista atrapalhando, causando mais pressão e cansaço cognitivo mesmo. Exigia muito ficar revisitando o aplicativo apenas pra limpar a lista, sem falar na indecisão que vários itens geravam: “mantenho ou não? será que eu não vou querer fazer isso um dia?” 😑
“O bom das ferramentas digitais é que elas nunca esquecem e tem espaço infinito. O ruim das ferramentas digitais é que elas nunca esquecem e tem espaço infinito” - Será que alguém já falou isso? 🤔😅
Uso do caderno
Hoje prefiro utilizar o caderno para minhas “próximas ações” e algumas revisões.
Se não concluo um item ou esqueço de riscá-lo ou esqueço dele mesmo, não tem problema, ao virar a página, algo impressionante e mágico acontece, ele não está mais lá. 😂
Brincadeiras à parte, notei que itens urgentes eu provavelmente já teria feito e os realmente importantes pra mim eu acabava lembrando de trazer de volta pra página atual de “próximas ações”. Assim acredito que o processo ficou mais leve e digamos natural.
Quanto as revisões, pelo mesmo motivo de evitar distrações, inicio elas no caderno e depois de finalizar, ou achar que avancei bem, passo os pontos principais pra Evernote para que eu consiga pesquisar depois.
Mas não para por aí.
Princípios atualizados
Acredito que o GTD (da forma como está no livro) tenha sido idealizado num momento onde a quantidade de informações que tínhamos para processar, apesar de grande, era gerenciável. Não acredito que isso seja verdade hoje. É humanamente impossível processar tudo que hoje nos é apresentado.
“Novidade, transitoriedade, diversidade e aceleração são ótimas palavras para descrever a existência civilizada. […] nossa era moderna, chamada de Idade da Informação, nunca foi chamada de idade do conhecimento." - Armas da Persuação 2.0, Robert Cialdini
A questão então é não processar tudo, mas sim reduzir a exposição, filtrar o que chega com inteligência (emocional inclusive) e confiar em alguns atalhos da mente para evitar ter que pensar em tudo.
Nesse sentido, tenho alguns ajustes para propor nos princípios que comentei do GTD:
Antes de tudo regule o emocional. Ao invés de regule, talvez eu pudesse ter dito: acolha. As vezes que não acolhi minhas emoções, por exemplo em situações de estresse ou ansiedade, acabei mais me atrapalhando do que me ajudando.
Posso acabar colocando coisas demais na lista ou não conseguindo manter o foco ou mesmo abandonando tudo porque cheguei no meu limite. Tento ficar atento, percebi algo? Paro, respiro, porque estou assim? o que posso fazer?
Tentar numa de crise de ansiedade, por exemplo, anotar tudo que vier à mente ou focar no trabalho à força não é inteligente.
Delegue antes de anotar, e antes de delegar, elimine. Talvez mais útil para meu papel hoje de líder, mas as vezes encontro utilidade no dia a dia também:
A essa altura, eu sei o que deveria estar fazendo e o que não deveria, porque então as vezes coloco na lista algo que não deveria fazer? Será que foi por receio de delegar? Será que eu só queria fazer por achar a atividade interessante? Tento descobrir o motivo e ajustar.
Na mesma linha, eu muitas vezes sinto que não haveria motivo para qualquer pessoa está fazendo aquilo. Ao invés de delegar, será que posso automatizar? Será que posso parar de fazer aquilo por completo? Quais os riscos?
Dito isso, não vejo problema das ações em si de delegar (“mandar mensagem para X explicando e pedindo…") ou eliminar irem parar na lista de tarefas.
Capture (com cautela). Tem muito compromisso rondando a mente? Ok, hora de anotar. Hoje eu percebo que preciso parar o que estou fazendo e escrever novas tarefas quando conto pelo menos uns 3 assuntos diferentes atraindo minha atenção. Mas não vejo mais as “caixas-de-entrada” da vida como via antes. O depoimento abaixo representa bem meu atual entendimento:
“Sua caixa de mensagens é uma lista que qualquer pessoa no mundo pode acrescentar um item a ser cumprido. Precisei sair da minha caixa de mensagens e voltar a minha própria lista de tarefas” - Chris Sacca, Investidor de estágio inicial de empresas como Twitter, Uber e Instagram (Livro Ferramentas do Titãs, pág 194 - Tim Ferris).
Anoto quando realmente é importante e está alinhado com minha responsabilidade e propósito. Fazer bem ou durante muito tempo algo desimportante não torna a tarefa importante e o custo de remover algo na lista é maior do que nem colocar.
Esclareça. O que chegou até aqui, ok, é bom entender melhor. Nem tudo necessita de uma ação, ou pode ser concluído com apenas uma ação ou é pra agora.
Tem data fixa? sim, coloco na agenda. Não tem? Tenho certeza? É porque não tem mesmo ou porque não deixaram claro na mensagem? Acho que as pessoas tem a tendência de deixar no ar que algo é urgente porque acham que assim faremos mais rápido. Faz bem à saúde confirmar o prazo com quem te pediu.
É apenas uma ação? Coloco na lista. É mais de uma ação, mas são poucas? Também coloco na lista. É uma sequência de ações que posso acabar pulando alguma? Crio uma nota no Evernote com um checklist e coloco a primeira na lista.
Organize, mas não fique preso nisso. Priorizo ter uma boa ferramenta de busca ao invés de um bom sistema de categorização e tags. As categorias e tags são interessantes quando a correlação entre tópicos não é óbvia, ou seja, não está no conteúdo ou texto. Mas para todo o resto, basta eu conseguir pesquisar.
Revise (a cada 3 ou 6 meses). Fazer revisões regulares é importante, mas tentar como eu fiz aplicar uma retrospectiva da vida ao final de cada sprint (de 2 a 4 semanas) é loucura. A vida não é uma corrida.
Cansei, no pior sentido da palavra, e de “bônus” devo ter me tornado o chato do relacionamento. Sem falar que em certas situações negligenciei minha família com o autoengano de que estava “revisando nossos objetivos de curto, médio e longo prazo”. 😑
Passei a olhar o macro, rever a direção e não os detalhes, de preferência em momentos que não concorrem com dar atenção à família. Estou vivendo de acordo com meus princípios? Estou fazendo agora um pouquinho de cada vez para chegar onde gostaria? Direção e consistência me parecem mais importantes do que o tamanho de cada passo.
A cada 12 meses talvez seja muito. Penso em algo em torno de 3 ou 6 meses.
Faça. Auto explicativo. Vale só complementar que as vezes percebi eu evitando fazer algo pelo desconforto de fazê-lo, apesar de saber sua importância.
Como lembretes, hoje tenho um post-it no monitor com a frase “Você está inventando coisas para evitar o que é importante!" e uma placa de madeira na estante do escritório que diz “A vida encolhe ou se expande na proporção da sua coragem” (feita pela minha irmã 😍).
Quando cansar, não se isole. Lá no começo do livro “Sociedade do Cansaço” ele fala:
"[…] pertence também à depressão, precisamente, a carência de vínculos, característica para crescente fragmentação e atomização do social."
Se tornar uma pessoa produtiva, principalmente num ambiente familiar e de amigos distantes em termos de propósitos de vida, pode te isolar. Senti um pouco disso comigo. Por um lado, acho necessário se aquela vida não te satisfaz mais ou até as vezes te oprime. Por outro lado, é perigoso. Após um isolamento inicial, um caminho talvez seja se reconectar com quem faz sentido, amigos antigos ou novos, e criar o hábito de procurá-los nem que seja para ambos “dividirem o fardo do ser”:
“A um cansaço calado, cego, dividido, Handke contrapõe um cansaço falaz, vidente, reconciliador. […] Eu não só vejo simplesmente o outro, mas eu próprio sou o outro e ‘o outro torna-se igualmente eu’ […] No torna-se menos do eu, desloca-se o peso do ser do eu para o mundo. É um cansaço que confia no mundo; enquanto eu, o cansaço-eu enquanto cansaço solitário, é um cansaço sem mundo, destruidor de mundo."
Pera, e cadê a prioridade?
Se você chegou até aqui pode ter notado que não uso nenhuma técnica específica de prioridade.
Modifiquei meu ambiente (algo que aprendi no livro Hábitos Atômicos do James Clear) para evitar ter itens demais (ex: caderno ao invés de aplicativo) e para evitar focar em coisas desimportantes (ex: lembrentes visuais, travar agenda para atividades rotineiras).
Ainda assim, a pergunta é válida, será que o que faço é suficiente e até quando? será que eu não vou me perder novamente?
Não tenho resposta pra isso. Hoje maior parte do meu trabalho é desimpedir as pessoas do time além de prepará-las e orientá-las para o futuro. Sem estratégia posso ficar o dia olhando emails e chats e sem mecanismos para me atualizar posso perder relevância para o time, cliente e empresa.
Só que vejo algumas técnicas de prioridade como guias ou referências e não “use isso ou falhe”.
Dicas como “escolha só uma coisa pra fazer”, “use uma folha pequena para não caber tantas coisas”, “escreva os 3-5 itens prioritários no dia anterior” pra mim caem numa única categoria que é: limite suas tarefas. Faça menos coisas, escolha bem o que fazer. O que pra mim já é suficiente.
A Matriz de Eisenhower (pode dar um google), por exemplo, é muito legal porque ajuda a distinguir a natureza das atividades (como fiz de uma forma ou de outra durante o texto), mas nunca quis usá-la como algo para ficar preenchendo visualmente sabe? Li uma vez, absorvi o conceito, tento fazer minhas próprias conexões.
Recomendo fazer o mesmo. Leia e adapte.
Vale lembrar que parte de onde estou hoje é mérito, mas outra grande parte é privilégio mesmo. Minha situação financeira e meu papel, cujo o trabalho considero mais “criativo”, me permitem tomar algumas decisões (principalmente relacionadas ao uso do meu tempo) que eu mesmo no passado talvez não pudesse.
Tento estar atento a isso para não ser ingênuo e generalista, ou ao menos, menos ingênuo e generalista.