Se tem uma coisa que eu gostava de estar na graduação de Engenharia da Computação era a oportunidade de exercitar o pensamento abstrato. Assuntos como grafos, autômatos, eletromagnetismo e tantos outros nem um pouco palpáveis ocupavam nossos dias. Além disso, e mais importante, parecia natural e aceitável nas discussões acaloradas fora de sala pegar conceitos de uma ou mais disciplinas e tentar aplicar em outra não relacionada, sem a princípio ter que explicar todo o raciocínio por trás daquela ideia.

Mesmo que houvesse buracos na lógica, a sensação de “como não pensei nisso antes?” era bem gratificante. Levei essa liberdade de pensar e de usar a intuição para conectar assuntos distintos para vida profissional e posso dizer sem dúvidas que é uma das minhas fontes de prazer no trabalho.

Claro que nesse caminho já escutei demais que se você não domina os métodos, você não consegue repetir os resultados ou mesmo que você não pode afirmar que sabe sobre aquele assunto. A mesma discussão que acontecia fora de sala era inadmissível dentro dela. Em certo episódio, lembro de questionar a professora porque outras variações de um determinado método não funcionariam e a resposta dela foi: “Você provou isso? Quando você provar igual ao autor do livro, aí pode questionar." Um belo exemplo de pensamento crítico não acham? Me pergunto o quanto dessa visão não está enraizada na ideia equivocada de que só tem valia o que se aprende pelos caminhos e ambientes formais da escola e da universidade [1].  A única coisa a ser aprendida nesse caso foi: não questione o professor.

Esse assunto se torna especialmente sensível quando falamos de medicina e após termos vivenciado a pandemia do coronavírus repleta de recomendações duvidosas e fake news. Acredito na prática médica baseada em evidências principalmente para recomendações de larga escala. Mas como será que lá atrás os primeiros médicos testavam novos procedimentos?


Descoberta da anestesia

Lendo brevemente sobre os marcos da medicina, o caso do primeiro uso de anestesia numa cirurgia em 1846 me chamou a atenção. Antes disso as cirurgias tinham limite de tempo, pois analgésicos disponíveis na época, como o ópio, eram insuficientes. [2]

O dentista William T.G. Morton, após escutar de um professor de química sobre os efeitos do éter, começou comprando de um químico local e fazendo testes expondo a si mesmo e seus animais de estimação aos vapores de éter. Satisfeito com resultados, passou a aplicar em seus pacientes odontológicos. Em 1845, tentou algo similar numa demonstração na Harvard Medical School com o dentista Horace Wells e ambos sofreram grande humilhação por não conseguir aliviar a dor de um paciente que teve um dente extraído. No ano seguinte, William T.G Morton usou com sucesso éter sulfúrico para anestesiar um homem que precisava remover um tumor vascular do pescoço, cirurgia essa realizada por John Warren. [3]

Será que teria sido diferente se Morton não tivesse seguido sua intuição de que era possível sim anestesiar pacientes e, claro, tivesse feito os devidos ajustes com base em evidências práticas? Estamos em tempos diferentes e hoje temos acesso a uma base de conhecimento acumulado que as gerações passadas nem sequer poderiam imaginar. Ainda assim, tenho dúvidas de que podemos com base nisso descartar a intuição por completo.


Definindo intuição

Vários filósofos e psicólogos já usaram a palavra intuição de formas diferentes e com opiniões diferentes também. Freud, por exemplo, rejeitava a ideia de que qualquer conhecimento pudesse ser obtido por meio de revelação, intuição ou inspiração e sim apenas através da manipulação intelectual de observações feitas cuidadosamente. [4]

É comum também confundirmos intuição com instinto. No entanto, instinto está mais associado a uma inclinação da espécie a execução de comportamentos complexos sem experiência prévia, mas sim com base em fatores biológicos e emocionais. Um bom exemplo talvez sejam as respostas cerebrais dos pais ao choro do bebê. [5]

A psicologia moderna já fez alguns avanços no sentido de definir o que seria intuição. Ela seria a habilidade de rapidamente reconhecer padrões para tomar decisões ou gerar soluções sem longos argumentos lógicos ou evidências. O risco é que até mesmo experts em suas áreas nem sempre percebem que deixas no ambiente as levaram a decidir por uma abordagem ou outra.

Daniel Kahneman e Gary Klein argumentam que para avaliar a qualidade provável de um julgamento intuitivo seria preciso avaliar a previsibilidade do ambiente em que o julgamento é feito e a oportunidade do indivíduo de aprender as regularidades desse ambiente. [6]

Situações sob pressão de tempo, altos riscos e/ou em constantes mudanças não possuem nenhum desses traços. O que fazer?


Do intuitivo para o consciente e vice-versa

Todo esse assunto surgiu numa conversa com Valdenia, parceira de papos e ideias, e que é o exemplo mais próximo que tenho de pessoa que consegue seguir rotinas e métodos. Contava que muitos textos meus saem do que outros chamam de inspiração, mas que nada mais são do que muita prática, reconhecimento de padrões e escolhas intuitivas, geralmente nutridas à café 😅. Concluí, porém, que para me manter escrevendo de forma consistente no longo prazo e para construir linhas de pensamento mais longas e bem embasadas preciso recorrer a algum método.

O que difere meu pensamento de outros nesse ponto é que acredito que não necessariamente precisamos seguir um método criado, testado e aprovado por alguém, mas sim algum método. Podemos nos nutrir do estudo formal e adaptar ao nosso contexto ou mesmo fazer o caminho contrário, nos imergir na prática e descobrir os padrões a partir dali.

Vários experimentos relatados por Robert Cialdini no livro Armas da Persuasão 2.0 me parecem se encaixar nesse segundo caso. Ele se fez a seguinte pergunta: “Quem melhor para me ensinar como convencer as pessoas? A Universidade ou os vendedores de sucesso que fazem isso intuitivamente?” Sendo a resposta óbvia e sem dizer ser pesquisador e professor de psicologia comportamental, se candidatou como aprendiz em vários segmentos de vendas como imobiliárias, concessionárias de carro e outros. O que ele aprendeu dessas empreitadas foi fundamental para seus estudos e para o livro. [7]

Enquanto você lutar contra um dos lados (intuitivo/informal ou consciente/formal) você estará se limitando e limitando as mudanças que pode aplicar na vida, no trabalho e no mundo. Há espaço para os dois.


Introduzindo dinamicidade

Os estoicos falam sobre por nossas impressões à prova antes decidir e alguns podem interpretar isso como uma regra para nunca seguirmos nossa intuição, como pareceu ser o caso no livro Diário Estoico [8]. Seguir sua intuição pode garantir agilidade perante ao desconhecido, logo depois é sábio colocar os resultados à prova, olhar para o que os dados dizem, fazer ajustes ou mesmo aceitar que você estava errado. Sendo pragmático, podemos tentar aplicar o conceito de estabilidade dinâmica.

Ao que tudo indica o conceito surgiu primeiro na física em estudos sobre o comportamento de pilares imperfeitos quando eram aplicadas cargas sobre o eixo da coluna. Os estudos evoluíram e passaram a variar tempo de carga, velocidade, geometria do objeto e outros. [9] Hoje é possível encontrar o mesmo conceito aplicado na aeronáutica, sobre como a nave em movimento consegue voltar ao trajeto após sofrer forças externas [10], na biomecânica, sobre como uma pessoa pode se manter estável realizando determinadas tarefas [11], e em outros campos.

Buscar esse tipo de estabilidade seria tentar dinamicamente nos manter em torno de um ponto de equilíbrio apesar das forças nos afastando dela. Você se vê pensando muito e esperando ter garantias de que vai funcionar? Siga mais sua intuição. Tomando muitas decisões intuitivamente sem embasamento? Vale uma pausa e ir atrás de estudos e de dados obtidos do seu contexto e realidade para conseguir acertar mais. Cada um, e em cada área, vai se posicionar num ponto diferente dessa régua, mas todos podem se beneficiar dessa dinamicidade, especialmente na era da falta de verdades absolutas. [12]


Estudos Citados

  1. Schlochauer, Conrado. Lifelong learners: o poder do aprendizado contínuo. Gente, 1ª edição, Junho 2021, p.70
  2. 7 incredible medical breakthroughs that changed the world. <https://www.worldwidecancerresearch.org/news-opinion/2021/april/7-incredible-medical-breakthroughs-that-changed-the-world/>
  3. Medical Milestones: Discovery of Anesthesia & Timeline <https://www.umhs-sk.org/blog/medical-milestones-discovery-anesthesia-timeline>
  4. Walker Punerr, Helen (January 1992). Sigmund Freud: His Life and Mind. Transaction Publishers. pp. 197–200. ISBN 9781412834063.
  5. Li T, Horta M, Mascaro JS, Bijanki K, Arnal LH, Adams M, Barr RG, Rilling JK. Explaining individual variation in paternal brain responses to infant cries. Physiol Behav. 2018 Sep 1;193(Pt A):43-54. doi: 10.1016/j.physbeh.2017.12.033. Epub 2018 May 3. PMID: 29730041; PMCID: PMC6015531.
  6. Klein, Gary; Kahneman, Daniel. (2009). Conditions for Intuitive Expertise A Failure to Disagree. The American psychologist. 64. 515-26. 10.1037/a0016755.
  7. Cialdini, Robert. As armas da persuasão 2.0: Edição revista e ampliada. HarperCollins, 1ª edição, Agosto 2021.
  8. Holiday, Ryan; Hanselman, Stephen. Diário Estoico: 366 Lições Sobre Sabedoria, Perseverança e a Arte de Viver. Intrínseca, 1ª edição, Dezembro 2021, p. 142
  9. Simitses, G.J. (1990). The Concept of Dynamic Stability. In: Dynamic Stability of Suddenly Loaded Structures. Springer, New York, NY. https://doi.org/10.1007/978-1-4612-3244-5_5
  10. DUTRA, Luiz Costa e Silva. Glossário aerotécnico: inglês-português. São Paulo: Traço, 1979. 469 p. Citado em <https://www2.anac.gov.br/anacpedia/por_ing/tr3138.htm>
  11. Karimi MT, Solomonidis S. The relationship between parameters of static and dynamic stability tests. J Res Med Sci. 2011 Apr;16(4):530-5. PMID: 22091270; PMCID: PMC3214359.
  12. Schlochauer, Conrado. Lifelong learners: o poder do aprendizado contínuo. Gente, 1ª edição, Junho 2021, p.51