Como conversar mais no relacionamento?
Faz umas 3 semanas que assim que acordo pego o caderno e escrevo por alguns minutos ininterruptos. Geralmente sobre pensamentos e acontecimentos recentes que estão me incomodando e que não parecem resolvidos ainda. Muitas vezes eles próprios foram o motivo de eu ter me levantado antes e dormido menos. Aqui vai um trecho de um dia especialmente conturbado para nós aqui em casa:
'“Mamãe, porque toda vez papai foge de mim?”, minha esposa entra no quarto dizendo que nossa filha perguntou isso pra ela. Disse rindo, não entendi o motivo na hora. Não importa, a responsabilidade é minha. Me retirei fisicamente de onde ela estava mais de uma vez ontem para me acalmar e não descontar nela. Não devia ter feito isso, podia ter parado e respirado onde estava, me retirado mentalmente…'
Escutar isso doeu e não consegui digerir até esse momento aí, já no dia seguinte, quando fui pro caderno tentar entender meu comportamento e que caminhos alternativos poderia ter usado. Ninguém disse que seria fácil criá-la com respeito enquanto nós mesmos estamos resolvendo nossas pendências. Enfim, criação neurocompatível e disciplina positiva talvez sejam por si só temas para outros textos.
Essa idéia de escrever no papel aquilo que “toca na ferida” não descobri agora. A referência mais recente que lembro é do Ferramentas dos Titãs do Tim Ferris, e que cito bastante aqui, mas na verdade é da Julia Cameron, autora de alguns livros incluindo o Caminho do Artista. Nele, ela sugere uma rotina diurna de escrita, entitulada de páginas matinais, que como ela mesmo diz são “limpadores de para-brisa espirituais” que ajudam a enfrentar o dia com “olhos mais límpidos” e assim facilitam o caminho para criatividade. Tim Ferris se refere à prática como “aprisionar a mente agitada no papel” e também como uma das “defesas contra diabinhos da mente”. Se não me falha a memória, o James Clear autor dos Hábitos Atômicos também cita esse hábito do diário com outro formato.
Escrever ajuda a clarear a mente, mas como efeito adicional da prática, senti uma propensão maior minha a conversar sobre o assunto em questão com minha esposa após escrever sobre ele, o que me levou a me perguntar: Como ter mais conversas autênticas num relacionamento, especialmente aquelas desagradáveis e potencialmente transformadoras?
Sentimentos pré-conversa
Nossa rotina sempre foi meio frenética, os dois saindo pra trabalhar logo cedo e quando chegávamos em casa dividíamos o restante do tempo entre tarefas domésticas/responsabilidade e tempo a dois. Com o nascimento da nossa filha, isso só se intensificou e muitas vezes o prejudicado foi o tempo a dois. Demoramos pra notar, mas temos corrigido ao passar dos anos.
Conversas mais longas de qualquer natureza, até um “simples” planejamento financeiro, requerem uma preparação no mínimo de ordem prática, como combinar com os avós umas 2 horas só para nós. Minha impressão é que sentimentos não esclarecidos individualmente antes da conversa acabam adiando ainda mais o momento, cada um em seu silêncio ou acha que não é importante ou que não está pronto.
Levo pra vida a Comunicação Não-Violenta desde que li o livro de Marshall Rosenberg. Acho muito injusto e pouco eficaz você na correria do dia a dia simplesmente despejar no outro uma expectativa sua sem dar um mínimo de espaço para ambos refletirem e discutirem sobre. Venho preferindo então, guardar comigo até um momento propício. O lado destrutivo é que isso facilmente acumula e depois parece como uma pilha de assuntos mal resolvidos que cresce numa magnitude desproporcional aos eventos em si. Conversar com frequência é fundamental.
É aí que eu acho que a escrita entra. Se não há tempo suficiente e frequente a dois, que se aproveite então o tempo a um para fazer sua “tarefa de casa emocional”. Não basta só pensar, precisa externalizar para que não se chegue com pedras, e sim com um senso de responsabilidade por suas próprias ações, reconhecimento interno e mente aberta. Se mesmo assim não estou conseguindo resumir de forma falada, peço pra ela ler o que escrevi, o que também tem facilitado a conversa.
Estrutura da conversa
Não foi da minha criação, imagino que de muita gente também não, prestar atenção em como nos comunicamos e tomar certos cuidados na hora de expor algo que nos incomoda. Temos a tendência a exigir dos outros determinados comportamentos em vez de exprimir claramente as nossas necessidades, o que só causa tensão.
Por exemplo, numa situação que você está se sentindo incomodada(o) com a casa desarrumada, o que pode passar na sua cabeça é “Se ele/ela pelo menos colocasse as coisas no lugar” e que, expressa dessa forma, é apenas uma expectativa sua com relação ao comportamento do outro. O que pode está implícito é “Viver em uma casa harmoniosa e num ambiete sadio é uma necessidade minha, pois me traz clareza, sensação de descanso, etc”.
Uma vez entendida essa diferença (expectativa x necessidade), é possível partir para tentar estruturar a conversa que você pretende ter. No caderno de exercícios de inteligência emocional, Ílios Kotsou sugere 4 etapas para estabelecer uma comunicação mais autêntica (muito similar ao modelo de feedback que comentei nesse artigo):
- Descrever a situação problemática da maneira mais objetiva possível, de preferência com fatos;
- Descrever os seus sentimentos, falando sobre si mesmo sem acusar o outro;
- Descrever suas necessidades e não as soluções que você espera;
- Explorar junto com o outro o que ele estaria disposto a fazer para tentar responder às suas necessidades.
Nem sempre as conversas saem assim, mas com prática fica mais fácil já pensar nesse formato. Em algum momento, imagino sermos capazes de desconstruir inclusive as exigências que outro está fazendo, provavelmente por falta de experiência nesse modelo de comunicação autêntica, sem levar isso pro lado pessoal.
“A raiva é um carvão em brasa que você segura enquanto espera para jogá-lo em alguém” - Ditado Budista
Melhor então jogá-la logo no papel. Assim nem eu, nem ela nos queimamos.😌